top of page
Superquadra 108_Brasília_1958_Fonte - Instituto JFL

O Arquiteto

José Fernando Minho

“O arquiteto é um generalista, não um especialista. Tem que estar culturalmente preparado para exercer sua profissão de uma forma abrangente. Não pode ficar na minúcia, no detalhe. Esse é um aspecto muito difícil na formação do arquiteto: ...saber até que ponto se aprofundar em determinadas áreas do conhecimento que vão ser necessárias.”

“Quando o arquiteto domina o suficiente para dialogar com os especialistas, tem um instrumento muito mais forte de realização para seu projeto.”

LIMA, João Filgueiras. O que é ser arquiteto: memórias profissionais de Lelé (João Filgueiras Lima); em depoimento a Cynara Menezes. Rio de Janeiro: Record, 2004.

Lelé -1957 - Brasília_Fonte - Instituto JFL

Lelé nasce arquiteto em torno das obras de mestres como Mies van der Rohe, Alvar Aalto, Richard Neutra e, evidentemente, Oscar Niemeyer. Dos primeiros herdou o rigor técnico, a compreensão do objeto arquitetônico na relação com o usuário e com o seu meio. Do último, a procura pelo belo na arquitetura. 

A ida para Brasília com dois anos de formado para construir, em condições adversas, os primeiros onze blocos de apartamentos da nova capital que seria inaugurada três anos depois, vai fazer aflorar o arquiteto construtor. As estratégias para a execução das obras em tão curto prazo, levando em conta as dificuldades de acesso aos insumos e a comunicação precária com o Rio de Janeiro, ainda capital federal, vão exigir planejamento rigoroso das etapas da construção, atenção à racionalização dos processos e uso, sem desperdícios, dos materiais. 

Esses desafios vão encaminhá-lo para a industrialização da construção, desde o início da sua atuação na construção da superquadra 108 Sul de Brasília, quando da montagem do acampamento para os operários e das instalações do canteiro de obras.

[...] tinha que montar uma pequena cidade, que tinha que ter refeitório, lavanderia, tinha que ter alojamento para as pessoas todas (cerca de 2500 homens). Então, foi aí a primeira vez que imaginei fazer essa coisa da pré-fabricação em madeira para ganhar prazo na construção dos alojamentos [...].

Entrevista de João Filgueiras Lima, Lelé, concedida a José Fernando Minho e a Luiz Marcelo Vasconcelos Rêgo - Salvador-Ba, abril de 2008.

A partir do final dos anos 1960, Lelé vai incorporar soluções para a humanização dos ambientes promovendo a integração com jardins e adotando sheds para a cobertura dos edifícios que possibilitam a iluminação e ventilação naturais. 

No final da década de 1970, intensifica o uso da argamassa armada na pré-fabricação de componentes do mobiliário urbano, dos sistemas de saneamento básico e mobilidade nas comunidades de baixa renda, das passarelas, das escolas, creches e hospitais de qualidade técnica e estética indiscutível que promovem a dignidade em cidades como Salvador, Rio de Janeiro e Brasília. Era a visão de Lelé e de um grupo de artistas e intelectuais dentre eles Antônio Risério, Rogério Duarte e Wally Salomão, liderados pelo antropólogo Roberto Pinho, que fizeram parte da primeira administração de Mário Kertész na Prefeitura de Salvador pela RENURB e que gestaram o conceito do que viria a ser a Fábrica de Cidade, a FAEC, no segundo mandato de Mário Kertész. 

São ideias que vão acompanhar toda a sua vida profissional e o levaram às realizações com a industrialização da construção que marcaram a sua arquitetura, aprimorada a cada projeto, através do processo que ele denominava de recorrência. Esta metodologia consistia na análise das obras executadas para ajustes ou redesenho de fôrmas, de sheds e de sistemas de ventilação e iluminação naturais, de caixilharia e outros, a serem aplicados em novos projetos.

Aliadas desse processo eram as ações integradas implementadas desde a concepção do projeto até a inserção de obras de arte. As disciplinas que compõem os projetos executivos, desenvolvidas ao mesmo tempo que os projetos de arquitetura e sob a sua coordenação, garantiam o controle das soluções e a integridade conceitual da obra.

Canteiro IAPB - Brasília_Fonte Instituto JFL
Canteiro IAPB - Barracões - Brasília_Fonte - Instituto JFL
Hospital de Taguatinga - Entrada_Fonte - Instituto JFL
Concessionária Disbrave - Acesso - Brasília_Fonte - Instituto JFL

Lelé e a industrialização

Lelé e a
recorrência

Interlocuções 
com arquitetos
contemporâneos

André Marques

A obra de João Filgueiras Lima se insere no contexto da arquitetura contemporânea que busca adequação do projeto aos imperativos climáticos, procurando a eficiência energética. A manipulação das possibilidades tecnológicas torna sua arquitetura dinâmica, como um organismo que transpira ao perceber o aquecimento do envoltório (pele). Tais características estão presentes na produção europeia contemporânea com aporte de alta tecnologia (high-tech) promovida por arquitetos como Renzo Piano, Richard Rogers, Nicolas Grimshaw e Santiago Calatrava, dentre outros.

+ Leia mais

Interlocuções com arquitetos contemporâneos

André Marques

Conforto ambiental
na obra de Lelé

Marieli Lukiantchuki

João Filgueiras Lima, Lelé, se destacou como um dos poucos arquitetos que dominou e incorporou de forma tão intensa e integrada os aspectos de conforto ambiental e humanização nos seus projetos. Concebeu diversos edifícios que jamais exerceram uma imposição sobre o usuário. Pelo contrário, autor de projetos totalmente idealizados para o ser humano, suas edificações surgiram como respostas às necessidades físicas e psicológicas dos usuários, alcançando como resultado edifícios tecnológicos, confortáveis e humanos. Muitos de seus ideais foram concretizados nos seus projetos através do no uso dos recursos naturais em um país tropical onde muitas vezes isso é subutilizado; na construção de espaços humanizados onde a arquitetura pode contribuir com a cura dos pacientes e, no uso de técnicas construtivas visando não apenas a racionalização da construção civil, mas também a resolução de problemas sociais e ambientais. Através da criação de soluções diferenciadas de conforto, ele integra princípios funcionais, econômicos e ambientais, reduzindo os gastos com a energia elétrica e, principalmente, tornando os espaços mais agradáveis, menos herméticos e humanizados.

Desde o início de sua trajetória profissional, Lelé incorporou as questões ambientais nos seus projetos, não por questões econômicas, mas pelo conforto dos usuários e pela humanização dos ambientes. O hospital de Taguatinga, por exemplo, cujo projeto é da década de 60, já apresentava essas soluções que foram aperfeiçoadas posteriormente nos hospitais da Rede Sarah Kubstchek. Segundo o arquiteto Lelé, em entrevista realizada pela autora em 10 de março de 2010, em Salvador, “Quando eu comecei a projetar sheds não havia o problema econômico. Então, o que me motivou foi a questão da humanização dos ambientes através da luz e da ventilação natural. Eu sempre achei que isso era mais sadio para o ser humano do que a iluminação artificial e o ar condicionado. Então, a minha posição inicial não foi movida pela preocupação com a economia energética, mas pela humanização. [...] Então essa preocupação, eu sempre tive, de ter luz natural, de proteger o prédio contra a insolação e de aproveitar os ventos. Isso pra mim é natural. O Hospital de Taguatinga que eu projetei em 1967 é assim. Tem muitos problemas, mas foi uma tentativa com a mesma preocupação. Então, havia uma preocupação. Se o resultado não foi bom, não quer dizer que não tenha havido a preocupação. O hospital de Taguatinga foi mal ocupado e muitas coisas mal resolvidas também, mas de qualquer maneira, todas as preocupações da Rede Sarah estão lá. O mesmo tipo: hospital aberto, luz natural e ventilação natural”

O uso de recursos naturais em um país de clima tropical como o Brasil, cuja grande parte do seu território possui clima quente e úmido, é extremamente importante para o alcance de forma passiva do conforto térmico dos usuários. O grande destaque de sua produção arquitetônica, com relação às soluções de conforto ambiental e os principios da humanização,  são os hospitais da Rede Sarah, considerados verdadeiros exemplos de arquitetura bioclimática. A rede, composta por 10 edifícios localizados em diferentes regiões do Brasil, tais como Brasília-DF; São Luís-MA; Salvador-BA; Belo Horizonte-MG; Rio de Janeiro-RJ; Belém-PA; Macapá-AM e Fortaleza-CE tem como estratégias principais: o uso de sheds com vasta iluminação e ventilação naturais; galerias subterrâneas como grandes dutos captadores do ar; espelhos d´águas para o resfriamento evaporativo, auxiliando no decréscimo da temperatura do ar e na filtragem das partículas de poeira presentes no ar, propiciando ambientes salubres e confortáveis; uso de ampla vegetação e de dispositivos de sombreamento para evitar a incidência da radiação solar direta nos ambientes internos.

A experiência que o arquiteto realizou nessa rede foram determinantes para que um novo padrão de arquitetura hospitalar fosse implantado. Edifícios construídos com base na industrialização, que utilizam recursos naturais através de soluções criativas e flexíveis, se transformam em locais confortáveis, econômicos e agradáveis.O sucesso dos Hospitais Sarah não se deve apenas às soluções tecnológicas que envolveram o sistema construtivo e a industrialização; ao trabalho em equipe e às soluções de conforto ambiental. Os hospitais surgem de fato como ambientes que contribuem com o processo da cura através de uma arquitetura humana, agradável e generosa. Isso só foi possível graças a postura humana de Lelé que enxergava os usuários como seres individuais e únicos, desenvolvendo projetos adequados à fragilidade dos pacientes. A Rede Sarah para Lelé foi uma grande escola de como ser artista, técnico e humano.

Além dos aspectos ambientais, a preocupação com o ser humano também foi um aspecto norteador de a sua produção arquitetônica, criando edifícios totalmente focados no ser humano. Assim, nos seus projetos temos a integração de fatores de ordem econômica, social, tecnológica e humana, tornando os edifícios da Rede Sarah uma importante ferramenta terapêutica. 

Fôrmas metálicas

Sergio Ekermam

Lelé desenvolveu trabalhos com Argamassa Armada desde a década de 70, em Brasília, mas foi em Salvador, com a criação da Companhia de Renovação Urbana (RENURB), que iniciaram os experimentos mais significativos no sentido de uma produção industrializada seriada.


Como em todo empreendimento ligado à pré-fabricação, aspecto fundamental neste desenvolvimento diz respeito ao desenho das fôrmas utilizadas na confecção das peças efetivamente utilizadas, algo que tomaria de Lelé e seus colaboradores boa parte do esforço intelectual e de desenvolvimento tecnológico no âmbito da RENURB e fábricas subsequentes, algo que, dentre muitas outras iniciativas ligada à sua obra, sintetiza a ideia de Lelé de um desenho “da” produção, ao invés de um desenho “para” produção.


De modo a alcançar o objetivo de pré-fabricação de componentes arquitetônicos que, dentre outras características, notabilizam-se por sua leveza, pouca espessura e presença de “dobras”, abas e rebaixos dedicados às interconexões e junções dos diferentes sistemas edilícios inventados por Lelé, as fôrmas passavam por um método de desenvolvimento peculiar, muitas vezes iniciado com um protótipo em madeira e compensado, para posterior desenvolvimento de peças metálicas, executadas em chapa de aço, dobradas, de diversas espessuras.

As fôrmas deviam, quando prontas, resistir a uma rotina de trabalho constante, com 2 ou 3 ciclos diários de moldagem/desmoldagem, cura em alta temperatura, esforços dinâmicos significativos, tanto na moldagem, quanto na desmoldagem, entregando peças com ótimo acabamento, sendo na maioria das vezes elementos articulados em múltiplos pontos para dar conta da complexidade formal dos elementos de argamassa armada.


Sendo assim, fábricas como a RENURB, a FAEC e o CTRS sempre contaram com centro de produção metalúrgica sofisticado, e projetistas especialistas de alto gabarito, a exemplo de Mariano Casañas e Waldir Silveira. Parte de seu trabalho consistia na confecção de desenhos em escala de 1:1, de grande dimensão, portanto, e detalhados em precisão milimétrica. Desenvolvidos junto a Lelé, abraçam tradição e know-how da indústria da pré-fabricação pesada, mas absorvem a engenhosidade criativa de Lelé no sentido de uma experiência única no campo da arquitetura e da engenharia, hoje reconhecida internacionalmente.

Desenhos: acervo Fernando Minho/FAUFBA, digitalizados através de pesquisa PIBIC/UFBA/FAPESB coordenada por Sergio Ekerman, em colaboração com Fernando Minho e Ceila Cardoso

 

Imagens das fôrmas de viga: Acervo Instituto João Filgueiras Lima

A síntese das artes na obra de João Figueiras Lima

No Brasil houve uma versão local do debate internacional da Síntese das Artes Maiores – a união da Pintura e Escultura com a Arquitetura, formando uma obra de arte total. A obra de João Filgueiras Lima, o Lelé, adotou posturas e descobertas deste debate, e arriscou abordagens próprias, levando alguns tópicos às últimas consequências. De entrada, assumiu que seria na forma da integração das artes,  mais propriamente da colaboração com um artista plástico específico, Athos Bulcão (1918-2008). O arquiteto aplicou a cor em suas obras, em grau crescente, a partir da experiência e convívio com Athos, concorrente com a participação do artista nas obras de Lelé, que se diversificaram, abrindo o leque de recursos e tornando-se mesmo imprescindível a essa arquitetura.

Daniel J. Mellado Paz

+ Leia mais

A Síntese das Artes

na Obra de João Filgueiras Lima

Daniel J. Mellado Paz

João Filgueiras Lima

e o debate sobre a Escultura Moderna

Daniel J. Mellado Paz

interlocuções com arquitetos contemporâneos
Fôrmas Metálicas
A Síntese da Artes na Obra de Lelé
CONFORTO AMBENTAL

Pensar a arquitetura residencial do arquiteto João da Gama Filgueiras Lima (1932-2014) é imergir na própria dinâmica e desenvolvimento das obras realizadas por Lelé ao longo de mais de 50 anos de profissão (1957-2014). A casa privada – que em um primeiro momento parecia desconectada dos programas sociais produzidos em série, como as escolas, hospitais e creches – assume um papel indutor na obra do arquiteto, na medida em seu projeto opera em uma via de mão dupla: informando uma prática baseada em preceitos e preocupações inconstantes e subsidiando pesquisas construtivas e espaciais renovadas a partir do envolvimento de Lelé com materiais e sistemas distintos.

 

A linguagem mutável com a qual Lelé operou para viabilizar este pequeno conjunto de residências que logrou construir, se comparado ao grande volume de casas projetadas, é reflexo também de um contexto cultural, sociopolítico e econômico muito específico. Um grupo de arquitetos menos dogmáticos, do qual faziam parte nomes como Severiano Mário Porto, Acácio Gil Borsoi e o próprio Lelé, conseguiu assimilar em suas obras ecos de um debate promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil no início dos anos 1960 que colocou em pauta problemas até então pouco discutidos pelo poder público, como a urbanização acelerada,  o fenômeno de crescimento das favelas verificado principalmente nos grandes centros e, obviamente, a situação da habitação, vista naquele momento como um problema a ser equacionado através do binômio industrialização/planejamento.

 

Embora a chamada casa burguesa unifamiliar estivesse no centro das pesquisas realizadas sobre a produção residencial de Lelé, não se pode dizer que o arquiteto abandonou o tema da habitação coletiva (e social) enquanto seus pares se debruçavam sobre projetos para o BNH. A conhecida proposta de Lelé para o programa habitacional Minha Casa Minha Vida (2011), que buscou, sem sucesso, construir 3,4 milhões de unidades até o final de 2014, foi precedida por tentativas do arquiteto, a serviço de grandes construtoras, em oferecer soluções para moradia em larga escala para a população de baixa renda, no Brasil e no exterior, por meio da pré-fabricação pesada em meados da década de 1970.

 

Seja na habitação coletiva ou individual, a visão que Lelé tinha da moradia se alterou ao longo de sua carreira da mesma forma como seu próprio entendimento sobre industrialização. Grandes painéis pré-moldados em concreto armado cederam lugar a placas esbeltas de argamassa armada antes mesmo que o aço inaugurasse uma nova fase como protagonista de uma produção mais leve e dinâmica.  Nesse sentido, é mais coerente afirmar que ao invés de ter usado a residência para propagandear visões de mundo ou manifestos, Lelé se concentrou em colocar a casa no centro de suas investigações, como se elas pudessem validar o encaminhamento que o arquiteto daria às outras dimensões de sua própria arquitetura.

A dimensão
do morar 
na obra de Lelé

Adalberto Vilela

bottom of page